moleskine de mentol

Era a miúda das pastilhas de mentol.
Todos os dias à mesma hora sentava-se no jardim da praça. Depois de estendida a manta que trouxera do serviço de voluntariado, apenas porque se afeiçoara ao coelho vermelho bordado, colocava os óculos geometricamente azuis.
De olhos semicerrados, mexia energeticamente em movimentos desconcertados a boca pequena. Volta e meia, soltava a rebeldia num balão elástico. Era um gesto mecânico e frenético. Os balões sucediam-se como se de uma competição se tratasse. E lá permanecia, até devassar por completo a identidade da pastilha elástica.

Indiferente ao olhar curioso dos velhos que se perdiam nas horas entre as pintas pretas dos dominós e os reis e as rainhas do já gasto baralho de cartas, ia folheando com nostalgia o seu caderno de bolso de capa negra . Tratava-se de um moleskine que oferecera a si própria no ultimo aniversário. Fora o primeiro de muitos.

Todos os que lhe eram próximos conheciam esse seu enorme desejo de partir à descoberta do mundo. Desde cedo que fazia dos guias de viagem o seu livro de cabeceira. Mas enquanto não cumpria o sonho, vivia intensamente esse desejo. Respirava-o.
Naquele pequeno objecto eram relatadas todas as viagens que imaginava. Sonhos vestidos por letras fechados entre folhas. A descrição era de tal modo minuciosa que fazia crer a qualquer um que lesse que tal viagem tinha sido, de facto, concretizada. Cada pormenor, cada expressão, cada local...Tudo fazia sentido no seu mundo onírico, tudo era tão perceptivel aos olhos de um verdadeiro viajante.

Naquele dia, o vento mostrava alguma inquietude, ora ameaçando com zumbidos, ora abanando as árvores num desejo arrebatado de as despir. Ela ia afastando as folhas que teimavam em cair sobre o caderno.
Sentia-se a versão feminina do Bruce Catwin, o aventureiro escritor de viagens. Tinha na mão um valioso testemunho daquilo de que era feita. De vez enquando dava voz às viagens e lia as passagens com tanto entusiasmo e empenho como se de um púlpito discursasse. O barulho do vento, ainda assim conseguia abafar a sua leitura.

Era capaz de ficar horas, ali, como se o mundo parasse e ela levantasse voo na sua manta preferida, qual Aladino versão Gulliver nas suas viagens. Não se sentia poeta, nem grande, apenas maior do que os homens. Pelo menos aqueles que dividiam consigo os fins de tarde na praça.

As palavras deram lugar a novos elásticos balões. A tarde à noite.
Apagou-se a voz. Acederam-se as luzes dos candeeiros. Fechou o caderno em jeito de despedida e colocou o elástico à volta da capa negra, metendo-o de seguida na algibeira. O vento parou de soprar.

Era a miúda das pastilhas de mentol.

Sem comentários: